Final dos anos 70,
adolescentes entre os quinze e dezessete anos, aquela turma de uns oito a dez
já adorava uma boa cachaçada. Vez por outra iam passar o fim de semana numa
usina de açúcar, próxima cerca de setenta quilômetros da capital. Naquele
tempo, distância suficiente para que se transportassem a outro mundo.
Sempre que chegavam à
cidade tomavam o Bar S. João como base, cujo dono, obviamente, se chamava João,
um sujeito moreno, estatura mediana, cabelos e farto bigode pretos. O bar,
bastante simples como todos do lugar, resumia-se a balcão e sinuca.
Certa vez a turma
estava tomando umas ao balcão, esperando a hora de dar uma volta na praça,
quando adentrou no recinto um senhor aparentando idade um pouco avançada. Meio cego e meio surdo, trajava roupas simples, usava um bigodinho branco e fino e trazia consigo um
grande saco de estopa com alguma coisa dentro, pois exibia certo volume, embora
aparentemente leve.
Um dos amigos perguntou
ao velho: “Tudo bem? O senhor aceita uma cachacinha?”, ao que o velho respondeu:
“Eu só bebo vinho!”. E o amigo mandou
Seu João servi-lhe um copo de vinho, que o velho verteu de uma só vez. “Estava
bom?”, quis saber o amigo. “Eu só bebo vinho!”, respondeu o velho, sem se
importar com a pergunta. “Seu João, mais um copo aqui para o cidadão, por
favor!”, solicitou o bondoso amigo. Novamente o velho tomou tudo de um só gole.
“Eu só bebo vinho!”, proclamou ao final do último gole, copo vazio no balcão,
lambendo os beiços.
A cidade era berço dos
mais conhecidos alambiques da região, fazendo com que a cachaça abundasse a tal
ponto que quase nada valia. Assim, o vinho servido ao velho senhor, mesmo
barato e ordinário, excedia em muito o valor da caninha tradicional.
Vendo que o velho
tomava vinho como quem bebe água, e preocupado com a conta a pagar ao final,
outro integrante da turma alertou o amigo: “Para de encher o bucho desse velho
de vinho, senão não vamos ter grana para pagar a conta!”. Mas o amigo insistiu:
“Vai mais um vinhozinho aí, mestre?”. O velho assentiu. “Seu João, mais um copo
de vinho aqui para o senhor!”, solicitou, piscando o olho e ordenando que desta
feita Seu João enchesse um copo de cachaça, o qual foi servido ao velho, que entornou goela abaixo seu conteúdo sem cerimônia da mesma forma que antes fizera com o vinho. Ao final, copo vazio no balcão, ainda passando a
mão na boca, o velho exclamou mais uma vez: “Eu só bebo vinho!”.
Mais um copo de cachaça
foi servido, mais uma vez aquele velho senhor bebeu tudo de um só gole, pôs o
copo vazio sobre o balcão, passou a mão nos lábios e exclamou: “Eu só bebo vinho!”, e
fez gesto de quem queria mais. Nessa hora os garotos perceberam que poderiam
ultrapassar a fronteira da brincadeira para a tragédia e pararam.
O velho ficou por ali,
chegou até a uma das portas do bar, deu uma olhada no movimento da rua,
sentou-se num batente com seu saco de não sei o quê no colo, estirou-se na
calçada e dormiu profundamente para desespero dos garotos, que ficaram ali,
velando o sono do velho, com receio de que ele passasse mal e partisse dessa
para outra.
Depois de incontáveis e
angustiantes minutos, o velho “ressuscitou”. Alívio geral. Hora de esquecer essa
brincadeira e ir paquerar na praça principal da cidade, onde uma pequena
plateia feminina assistia à novela das oito na televisão pública. Já se afastavam
quando o velho homem, enfim se levantou e bradou em alto e bom som: “Eu só bebo
vinho!”.
Pedro Altino Farias, em
04/11/2014
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