terça-feira, 4 de novembro de 2014

Eu só bebo vinho!


Final dos anos 70, adolescentes entre os quinze e dezessete anos, aquela turma de uns oito a dez já adorava uma boa cachaçada. Vez por outra iam passar o fim de semana numa usina de açúcar, próxima cerca de setenta quilômetros da capital. Naquele tempo, distância suficiente para que se transportassem a outro mundo.

Sempre que chegavam à cidade tomavam o Bar S. João como base, cujo dono, obviamente, se chamava João, um sujeito moreno, estatura mediana, cabelos e farto bigode pretos. O bar, bastante simples como todos do lugar, resumia-se a balcão e sinuca.

Certa vez a turma estava tomando umas ao balcão, esperando a hora de dar uma volta na praça, quando adentrou no recinto um senhor aparentando idade um pouco avançada. Meio cego e meio surdo, trajava roupas simples, usava um bigodinho branco e fino e trazia consigo um grande saco de estopa com alguma coisa dentro, pois exibia certo volume, embora aparentemente leve.

Um dos amigos perguntou ao velho: “Tudo bem? O senhor aceita uma cachacinha?”, ao que o velho respondeu: “Eu só bebo vinho!”.  E o amigo mandou Seu João servi-lhe um copo de vinho, que o velho verteu de uma só vez. “Estava bom?”, quis saber o amigo. “Eu só bebo vinho!”, respondeu o velho, sem se importar com a pergunta. “Seu João, mais um copo aqui para o cidadão, por favor!”, solicitou o bondoso amigo. Novamente o velho tomou tudo de um só gole. “Eu só bebo vinho!”, proclamou ao final do último gole, copo vazio no balcão, lambendo os beiços.

A cidade era berço dos mais conhecidos alambiques da região, fazendo com que a cachaça abundasse a tal ponto que quase nada valia. Assim, o vinho servido ao velho senhor, mesmo barato e ordinário, excedia em muito o valor da caninha tradicional.

Vendo que o velho tomava vinho como quem bebe água, e preocupado com a conta a pagar ao final, outro integrante da turma alertou o amigo: “Para de encher o bucho desse velho de vinho, senão não vamos ter grana para pagar a conta!”. Mas o amigo insistiu: “Vai mais um vinhozinho aí, mestre?”. O velho assentiu. “Seu João, mais um copo de vinho aqui para o senhor!”, solicitou, piscando o olho e ordenando que desta feita Seu João enchesse um copo de cachaça, o qual foi servido ao velho, que entornou goela abaixo seu conteúdo sem cerimônia da mesma forma que antes fizera com o vinho.  Ao final, copo vazio no balcão, ainda passando a mão na boca, o velho exclamou mais uma vez: “Eu só bebo vinho!”.

Mais um copo de cachaça foi servido, mais uma vez aquele velho senhor bebeu tudo de um só gole, pôs o copo vazio sobre o balcão, passou a mão nos lábios e exclamou: “Eu só bebo vinho!”, e fez gesto de quem queria mais. Nessa hora os garotos perceberam que poderiam ultrapassar a fronteira da brincadeira para a tragédia e pararam.

O velho ficou por ali, chegou até a uma das portas do bar, deu uma olhada no movimento da rua, sentou-se num batente com seu saco de não sei o quê no colo, estirou-se na calçada e dormiu profundamente para desespero dos garotos, que ficaram ali, velando o sono do velho, com receio de que ele passasse mal e partisse dessa para outra.

Depois de incontáveis e angustiantes minutos, o velho “ressuscitou”. Alívio geral. Hora de esquecer essa brincadeira e ir paquerar na praça principal da cidade, onde uma pequena plateia feminina assistia à novela das oito na televisão pública. Já se afastavam quando o velho homem, enfim se levantou e bradou em alto e bom som: “Eu só bebo vinho!”.


Pedro Altino Farias, em 04/11/2014


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