domingo, 24 de julho de 2016

O Estranho que Emitia Ruídos


Parecia inofensivo ao balcão do bar. Tomava alguma coisa de forma pausada, metódica e ritmada. Roupas escuras e ar circunspecto completavam sua aparência observada por outro bebedor balconista, que ansiava por um bom papo, por isso prestara atenção naquele estranho.

Antes que se aproximasse dele, porém, o estranho sacou um pequeno aparelho do bolso do casaco. Não se tratava de um celular, nem rádio ou gravador, mas, com a boca próxima a ele, parecia comunicar-se com alguém. Curioso, nosso bebedor aproximou-se discretamente do estranho, constatando que ele pronunciava ruídos ao invés de palavras, fosse de que idioma fosse. Ruídos ininteligíveis!

Intrigou-se com aquilo. Tomou mais um trago. Agora o estranho calara-se. Outra dose, a conta e foi embora, tentado esquecer o que presenciara. Tarde demais!

Sentiu-se perseguido a partir de então. Vigiado. Recebeu mensagens de áudio pelo celular. Ruídos, apenas. Semelhantes aos que ouvira sair da boca do estranho. Intrigado, levou o aparelho a um amigo especialista em sons. Ondas sonoras analisadas cuidadosamente por computador, somente ruídos sem forma ou sentido.

Abordado na rua por outro estranho, foi conduzido a um pequeno apartamento no centro da cidade. Inexplicavelmente ele deixou-se ser levado sem questionamentos. Dissidências existem em todo lugar, em todas as situações, então, na condição do mais absoluto sigilo, o estranho, deixando a linguagem de ruídos de lado, contou-lhe segredos dos seus pares, que culminariam com o domínio do planeta Terra e sua total transformação, com a qual não mais seria possível a sobrevivência humana. Quem eram estes seres? Ah, isto não lhe foi revelado.

A ideia consistia, inicialmente, na destruição de todas as fontes de geração de energia através de dispositivos desconhecidos dos humanos, mas que foram explicados ao nosso inocente bebedor de balcão, bem como o plano completo do dissidente para evitar que tal catástrofe dizimasse a raça humana da Terra. Sentiu o peso de toda a humanidade em seus ombros. Teria de agir sozinho e em segredo para obter êxito, era a condição. “Por que eu? Só queria tomar mais duas ou três doses e um bom papo... tá certo, tá certo... umas seis ou oito, que fossem, mas só isso...”. Agora ele tinha a obrigação de salvar o planeta. E sozinho!

Os dias que se seguiram foram de apreensão. Cada tarefa ditada pelo estranho dissidente, um prazo a cumprir. “Será que realmente ele é ‘do bem’, conforme disse? Ou está me usando como ferramenta para fuder tudo?”, questionava-se. Sem alternativas, uma passada no bar para duas ou três doses todo dia tornou-se absolutamente necessária tamanha a tensão que passara a viver. 

O dia “D” chegara. Tarefas esdrúxulas a cumprir, prazos exíguos. Esforço redobrado, um esforço por toda a humanidade. Trabalhos encerrados conforme o exigido pelo estranho que emitia ruídos, tudo continuou exatamente como d’antes. Dera certo, enfim! Chegou em casa exausto. Um gole de bebida forte e jogou-se na cama. Dormiu o sono dos justos. Ele acabara de salvar o mundo, mas ninguém sabia, e jamais saberia! Nem mesmo o pessoal do bar...


Pedro Altino Farias, em 24/07/2016
ATENÇÃO:
os textos deste blog estão protegidos pela lei nº 9.610 de 19/02/1998. Não copie, reproduza ou publique sem mencionar os devidos créditos.




Orelhas Brancas


Tinha de viajar a lugar distante e desconhecido por conta do trabalho. E assim o fez. Antes, porém, os preparativos de praxe: antecipação do pagamento de contas, reorganização da agenda, recomendações domésticas.

Chegando ao destino, estranhou tudo. A estética contrariava a lógica, com construções angulosamente obtusas, recortadas, aparentemente antifuncionais. Veículos também seguiam a mesma tendência, com formas inusitadas, feias, desarmônicas. O desenho das ruas e tráfego de pessoas e automóveis, um caos.

Ao chegar ao hotel recebeu a recomendação de que deveria adquirir certo produto para ser adicionado à água do banho. Acondicionado num balde de dezoito litros, era uma espécie de geléia, que ele questionou ser mesmo necessário.

- Para que serve isso? Não é muito? Vou ficar pouco tempo..., perguntou à pessoa que o recepcionara.

- Suas orelhas já estão brancas, já reparou?, respondeu o habitante do lugar. 

- Orelhas brancas? Mas o que é isso? O que acontece aqui?, inqueriu constatando que suas orelhas, de fato, estavam embranquecidas.

- É por causa do cigarro, respondeu seu interlocutor.

- Cigarro? Mas eu nem fumo...

- E nem precisa, toda a fumaça de cigarro do mundo vem para cá e aqui se acumula, não sabia? Por isso usamos essa geleia para limpeza do corpo, senão...

- Meu Deus, aonde eu vim parar!

Horrorizado, tomou o primeiro banho esfregando freneticamente a pele com a geleia do balde. Estava confuso, quase desesperado. Tudo à sua volta parecia estar em completa desarmonia estética, estrutural, funcional e mais o que fosse.

O negócio que fora resolver não dera certo e a volta deveria ser abreviada. Alívio! Mas não havia voos para sair dali antes de cinco dias. Desespero! E as orelhas embranquecendo, embranquecendo...

Confuso, tentou, em vão, contato com os seus para avisar o que ocorria. Não obteve êxito. Conexões telefônicas e internéticas em pane. Aos poucos começou a sentir o corpo indolente, depois, inerte... E nunca mais se soube dele. 


Pedro Altino Farias, em 24/07/2016

ATENÇÃO:
os textos deste blog estão protegidos pela lei nº 9.610 de 19/02/1998. Não copie, reproduza ou publique sem mencionar os devidos créditos.

terça-feira, 12 de julho de 2016

Xi... Nim!

Não faz tanto tempo assim, nossas ruas e avenidas eram arborizadas com flamboyants, acácias, ipês, algarobas, paus brasil, benjamins, jambos, castanholas e outras mais.

 


Cada uma com sua característica, estas árvores acolhem pássaros e insetos, proporcionam boa sombra, embelezam. De uns tempos para cá, porém, só se vê mudas de nim nas ruas. Um praga!


Oriundo da Índia, de copa leve e fechada, cresce rapidamente e dá uma boa e gostosa sombra, tão bem vinda por estas bandas. Mas o nim se encera por aí, nem frutos, nem flores, nem beleza. Com a massificação da arborização da cidade com nins, a paisagem vai se repetindo monotonamente. Por isso, quando vejo uma nova muda numa calçada exclamo comigo mesmo em silêncio: “Xi... Nim...!”.


Pedro Altino Farias, em 02/07/2016

ATENÇÃO:
os textos deste blog estão protegidos pela lei nº 9.610 de 19/02/1998. Não copie, reproduza ou publique sem mencionar os devidos créditos.