Viveu a vida desregradamente. Mulheres, bebidas, jogo, cigarros, noites em claro. Dizem até que de vez em quando “puxava um baseado”, mas disso ninguém tem certeza. E se fosse? Nada de mais. Também amou muito. Exageradamente. E esse exagero sempre o levava do céu ao inferno em fração de segundos, tão intensos que eram seus sentimentos.
Morava numa espécie de estúdio, que se resumia a uma saleta, cozinha com balcão/bar, suíte e sacada, de onde tanto se via o nascer do sol quanto seu ocaso, dependendo da época do ano. Na sala, seu local favorito era uma pequena escrivaninha onde costumeiramente se debruçava sobre folhas de papel escrevendo compulsivamente não se sabe o quê. Escrevia por horas a fio madrugada adentro, enquanto ouvia boa música e bebia alguma coisa. Qualquer coisa, desde que contivesse álcool. Depois, já embriagado de tanto pensar, beber e sonhar, rasgava tudo que escrevera e jogava no lixo. E ao que parece esquecia definitivamente o que acabara de colocar no papel, deixando esses pensamentos para trás, como que para poder seguir adiante.
Seu quarto vivia em constante desalinho, com roupas jogadas por todo lado, cheiro forte de cigarro e bebida, que freqüentemente era derramada no chão, calcinhas femininas de todos os modelos e por toda parte. É, ele era doido por calcinhas, e sempre que alguma convidada permitia, ou dava chance, ele acrescentava mais uma ao seu acervo, vamos chamar assim. Suas prediletas não tinham vida longa, pois muito o serviam de companheiras em seus devaneios sexuais solitários e acabavam imprestáveis.
Uma mesma música ora o acalmava, ora o excitava, pois a calma e a euforia conviviam em eterno conflito dentro dele. Mas as belas melodias e poesias eram uma presença constante em seus momentos, e por esse motivo uma boa aparelhagem de som ocupava lugar privilegiado em sua saleta.
Alguns diziam que era louco, desajustado; outros, depressivo, mas não havia quem não tivesse prazer em estar em sua companhia. Às vezes chegava no “bar de sempre” alegre, sorridente e falante; outras, sisudo e caladão. De uma forma ou de outra, Zé Baiano, garçom que o atendia, providenciava logo sua dose de costume, e, aos poucos, suas idéias e pensamentos geniais e irreverentes iam aflorando, fluindo naturalmente. Puro delírio e prazer para quem partilhava a mesa com ele.
O trabalho o aborrecia demais, talvez por isso não tenha agregado mais patrimônio ao que herdou da família, empenhando-se apenas em ter o suficiente para nunca precisar de favores, ou ter que se manter em certa atividade forçadamente. Assim sua rotina consistia em acordar tarde, lá pelas nove, comer qualquer coisa e sair para o trabalho, que considerava um simples meio de subsistência, sem nenhuma pretensão de obter melhoras, promoções e coisas do gênero. Entrava as dez e saída lá pelas quatro e tanto, dependendo do dia. Seu chefe fazia vista grossa para faltas e horários incertos, visto que dava conta do serviço até melhor que quem cumpria jornada normal de oito horas. E, na hora do sufoco, sempre enxergava soluções onde só se viam problemas. Ele sabia disso e tirava proveito próprio dessa sua vantagem convertendo-a em horas de folga e rotina mais amena.
Depois do trabalho (“Ah! Graças a Deus!”) dava uma passadinha no mencionado “bar de sempre”, trampolim para outros bares, outros porres, outras viagens. A noite chegava e ele bebia, fumava, sorria, filosofava e cantava até se exaurir, e então voltava ao seu estúdio para, quem sabe, ainda passar horas pensando e escrevendo mistérios, vez que nunca se soube de que esses escritos tratavam; se cartas de amor, ou poesias, ou lamentos, ou sonhos perdidos... Ninguém nunca soube.
Em muitas ocasiões alguma amiga de mesa o acompanhava ao estúdio, e foram algumas delas que mencionaram aos outros os tais escritos, pois acontecia de acordarem no meio da madrugada com uma música suave ao fundo, uma luz fraca iluminando a escrivaninha, e nosso personagem a escrever páginas e páginas. Indagado sobre o que escrevia, desconversava, tomava mais um gole e jogava os papéis no lixo para dar atenção à amiga convidada... E, quem sabe, ao fim de tudo, ganhar mais uma calcinha para sua coleção.
Acontece que um dia o homem sumiu do “bar sempre” e dos outros bares que freqüentava de uma hora para outra. Passou-se um dia, dois, três, vários, até que se teve como certa sua ausência. Depois veio a notícia que ele havia morrido. Conta-se que ele morreu num dia qualquer, não se sabe bem ao certo quando nem de que, com uns quarenta e tantos anos, acreditam. Coração, cirrose, acidente, paixão... Quem sabe? Que diferença faz?
A família, sabendo do ocorrido, reclamou de imediato o corpo, e dele deu cabo às pressas. “Nem deram um passadinha no 'bar de sempre' com ele para se despedir da gente”, reclamaram os amigos de copo em tom de "Quincas Berro D'água". Mas no fim foi melhor assim, pois todo dia a turma fica imaginando ele chegar, roupa amarrotada, cabelos desgrenhados, cigarro aceso entre os dedos, e o Zé Baiano a correr para lhe servir uma dose da bebida habitual, na mesa de sempre, sempre no mesmo lugar, o qual ninguém nunca ousou usurpar.
Um dia apareceu no “bar de sempre” uma irmã, prima, cunhada, ou coisa o valha, perguntando por certa pessoa, que era um dos melhores amigos dele. Em conversa entre os dois a mulher contou que fora ao estúdio do morto providenciar seu desmantelamento, dando fim às coisas e objetos que lá se encontravam. Como também ouvira falar de certos escritos, que ninguém sabia do que tratavam, pôs-se a vasculhar o ambiente à procura de algo, algum indicativo, alguma coisa que desse a saber, ou pelo menos imaginar, o que se passava em seus pensamentos íntimos e solitários. Nada encontrou escrito. Nada. Muitos livros de assuntos variados, revistas, variadas também, mas escritos pessoais, nada. Ah, sim, encontrou um pequeno pedaço de papel dobrado, na verdade um rabisco, em cima da escrivaninha, com uma frase escrita com sua letra. Uma frase antiga, já comum e até banal por ser muito dita, mas que talvez o traduzisse, por fim. Ela tirou o pedaço de papel dobrado da bolsa e o pôs na mão do amigo, presenteando-o com uma lembrança do que se fora. O amigo abriu o pedaço de papel devagar e carinhosamente, e nele estava escrito apenas: “Sonhos: acredite neles.”
Altino Farias
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