terça-feira, 15 de setembro de 2015

Uma Vida em Capítulos

                                                    


                                         INTRODUÇÃO

Achava que a vida deveria ser vivida em capítulos como contos independentes. Ao virar uma página, o que passou, passou. Ponto. Sem interferências nos capítulos seguintes, sem traumas, mágoas, rancores ou lembranças. Assim se viveria tantas vidas diferentes quanto se quisesse. Para que ser advogado ou funcionário público por toda uma vida? Por que construir uma família para sempre? Por que morar numa mesma cidade por décadas a fio?

                                  
                                          CAPÍTULO I

Nasceu em boa família. Estudou bastante. Brincou um pouco. Namorou e casou com seu primeiro amor ainda bem jovem, antes mesmo de formar-se médico. Aliás, esse capítulo e o casamento terminaram antes que concluísse o curso.


                                         CAPÍTULO II

Conheceu uma nova-iorquina descendente de porto-riquenhos pela internet, largou o curso e mandou-se para os EUA. Bebeu, conheceu drogas e proclamou: “Liberdade! Essa é a vida que eu quero!". Decidiu estudar artes cênicas, mas seu visto de permanência venceu e ele teve de voltar ao Brasil. Deixou a nova-iorquina no passado, assim como o filho que ainda estava por nascer. De volta à pátria mãe, escolheu uma cidade do litoral para viver, mas passou o restante deste segundo capítulo sem saber ao certo que caminho seguir.


                                        CAPÍTULO III

“Meu Deus, já? Não sabia que quarenta anos se passam tão rápido!”. Mas a vida começa aos quarenta, não é mesmo? Ou ao terceiro capítulo de qualquer história. Mas este terceiro capítulo foi curto, e acabou antes que ele resolvesse qualquer coisa.


                                        CAPÍTULO IV

Contrariando o que pensara na introdução, aqui aconteceram coisas absurdas. Os capítulos começaram a se entrelaçar inesperada e freneticamente. Aquela do primeiro amor cobrou-lhe anos de desatenção apontando para o filho desajustado. “Ausência total do pai”, acusava ela. Ato reflexo, quis conhecer o rebento fruto do romance com a nova-iorquina, mas não obteve sucesso. Impacientou-se. A saúde também lhe cobrou uma conta pelos excessos da temporada teatral. Um capítulo inteiro tentando desesperadamente reorganizar a vida antes que ele terminasse.


                                           CAPÍTULO V

Inteligente e criativo, sem dúvidas, enfim, encontrou uma atividade que lhe satisfazia e rendia algum dinheiro para seu sustento, pois seus pais, que antes lhe proviam de tudo, haviam falecido no capítulo anterior. Seu único irmão não queria notícias dele há tempos, pois temia perder pelo menos um capítulo inteiro de sua própria vida envolvido com a do mais novo. Assim, esse capítulo terminou mais ou menos, porém, ainda a tempo de um novo amor.


                                           CAPÍTULO VI

Este capítulo começou com o fim de mais aquele romance. Desistiu. Ou era realmente complicado, ou os relacionamentos eram complicados. Obviamente achava que o problema não era ele. Sozinho, ia vivendo sem mais aquele viço de criatividade, sem planos futuros nem mais sonhos aos sessenta e poucos, no entanto, alentava a esperança de ficar em paz com seus filhos. Arrumou um cachorro de todas as raças para servir de companheiro, e terminou o sexto capítulo cheio de esperança.


                                           CAPÍTULO VII

Reconciliou-se com o irmão e, enfim, aguardava a visita dos filhos no capítulo seguinte, que se aproximava rapidamente. Uma vizinha amiga prontificou-se para arrumar-lhe casa, os cabelos e unhas; um garoto, que o tratava por vovô, ofereceu-se para banhar o vira latas. Estava tudo pronto, no entanto, a vida dele terminou inesperadamente antes do final deste capítulo. Uma pena.


                                           EPÍLOGO

Enquanto transitava entre uma dimensão e outra, pensava no caleidoscópio que fora sua passagem na Terra, os capítulos de sua vida. Não aproveitou o suficiente o primeiro capítulo, base da vida. Fora afobado e egoísta. No segundo, deu asas à liberdade, confundiu-se, viveu intensamente e voltou ao ponto de partida. No terceiro nem percebeu o tempo passar. No quarto, colheu o que plantara nos capítulos anteriores. No quinto, tentou se reequilibrar na tênue linha da vida; no sexto, sossegou o espírito. Agora, depois do fatídico sétimo capítulo, conseguia enxergar tudo o que se passara com ele, e tinha a esperança de que o entendessem e perdoassem. Desperdiçou muito tempo e sentimentos e agora daria tudo por mais um capítulo em sua vida... Por mais breve que fosse.

                                                  FIM

Pedro Altino Farias, em 13/09/15

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6 comentários:

  1. Amigo Altino,
    Li tua crônica "Uma Vida Em Capítulos".
    Realmente maravilhosa. Parabéns.
    Te peço autorização para retransmiti-la à uma amiga, professora de literatura na Universidade Estadual de Maringá, com quem costumo trocar bons escritos, dos quais alguns ela até leva para sala de aula. E esse, conhecendo bem o gosto literário dela, será assunto de uma aula inteira.
    Ela se tornará assídua leitora do teu blog.
    Forte abraço
    Dennis Pequeno Vasconcelos

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  2. Fique à vontade, amigo Dennis. Nossos escritos somente tornam vivos quando lidos, não é mesmo?
    Tudo o que eu enviar pode ser retransmitido sem problemas.

    Abraços e grato pela leitura.

    Altino

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  3. Amigo Altino: Criativo, brilhante, muita sensibilidade, além de um humor invejável.
    Abrs. Carlos Roberto Martins Rodrigues

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  4. Pedrinho,

    Um primor literário, sem sombra de dúvidas! Podemos nos espelhar em cada capítulo que já se passou, para refletir a respeito. Parabéns por mais essa!

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  5. Altino,
    Há uma bela música de Charles Aznavour, Hier encore, se não me engano , que trata de ligeireza da vida.
    Evidente, há toda uma filosofia, desde os clássicos, passando por Sêneca, sobre a efemeridade da vida.
    Parabéns, bela reflexão.
    Luciano Maia

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