quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

O Dia Que Mudou Tudo - Crônica de Natal 2019



Ele não sabe precisar o ano em que tal fato ocorreu, apenas que o Natal estava próximo. Caminhava normalmente pela rua quando tudo parou. Pessoas, máquinas, natureza. Assustou-se. O tempo parara completamente e, aparentemente, somente ele não sofrera tal efeito. Se não tinha uma explicação para o fenômeno dessa pausa temporal, tampouco imaginava o porquê de sua imunidade.

Num segundo momento percebeu que fitando os olhos inertes daquelas pessoas podia desvendar-lhes os sentimentos, tanto positivos, quanto negativos: alegrias, conquistas, angústias, frustações, decepções. Com um simples olhar passou a entendê-las e, mais que isso, a descobrir a vida de outra forma. 

Num instante pensou nos seus amigos e entes queridos, e movimentou-se para aonde estava cada um deles como se tele transportado fosse. Todos com os olhares congelados, porém, com suas almas expostas. Ficou chocado com o que “viu”. Mesmo tendo uma vida inteira de convivência, não imaginava a torrente de sentimentos que irrigava aquelas vidas, e lhes tirava a água também. Parou e olhou para si percebendo-se, ele próprio, imerso num emaranhado de sentimentos, positivos e negativos.

De súbito ouviu o choro de um bebê, sem distinguir de onde veio, ou se ouviu de fato. Imediatamente após percebeu nitidamente um homem com seus trinta e poucos passar por sua mente. Calmo e bondoso, parecia ser o guia a lhe apresentar a vida e as pessoas dessa outra forma, nuas, com todos os seus íntimos revelados.

Fim do transe, tudo voltou ao normal, numa movimentação urbana frenética. Agora sabendo como as pessoas são realmente, passou a compreendê-las, aceitá-las e ajudá-las no possível. Sentiu que todos agiam da mesma forma em relação a ele, e perguntou-se se elas não teriam passado pela mesma experiência surreal que ele. Talvez.

Enfim, noite de Natal. Família reunida para a grande ceia do ano, foi instado a dizer algumas palavras. De novo ouviu, ou pensou ter ouvido, aquele choro de bebê. Então se ergueu lentamente, olhou no olho de cada um e disse: O Natal chegou, não deixemos que ele se vá! E todos se abraçaram e dividiram o pão e o vinho postos à mesa numa grande comunhão, e a partir daí passaram a viver uma nova vida. Para eles e para os outros, a quem Alguém um dia chamou de próximo.



Altino Farias, em 16/12/2019 


terça-feira, 5 de novembro de 2019

Oração de Sexta Feira


Que a semana tenha sido abençoada,
E a cachaça não seja malvada;
Que o tira gosto seja saudável,
E o dono do bar, afável;
Que a sexta seja de alegria.
E ninguém chore, somente ria;
Que a noite não seja fugaz,
E o sábado, de muita paz.
Assim seja!

Pedro Altino Farias, em 18/10/19 

Lamento de Sexta Feira


                                                         

Ah, Sexta feira, 
Por que tens apenas as vinte e quatro horas de todo dia?
E dessas mais de vinte 
Apenas umas poucas se aproveitam à boemia?
Por que não és eterna como o Sol, a Lua e a poesia?
Ah, Sexta feira dos meus sonhos, 
À qual sempre sucede um sábado de luz,
O dia passa, arrastado, mas à noite o copo reluz,
Trazendo com ele amizades e sorrisos, 
Que a outros mundos nos conduz.
Ah, Sexta Feira, amiga efêmera e fugaz,
Faz de ti a minha paz,
Para que de enfrentar uma nova semana eu seja capaz!

Altino Farias, em 01/11/2019

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Olhar e Ver

A pressa, o desinteresse e a distração pura e simples, fazem-nos cegar ante mil coisas bacanas que desfilam frente a nossos olhos diária e continuamente. Verdadeiras maravilhas. É preciso calma, interesse e um pouco de poesia para nos darmos conta do mundo real que nos envolve, caso contrário teremos uma visão seletiva, composta somente das imagens que satisfazem nossas necessidades no momento, criando um “mundo virtual” só nosso.



Toda terça feira vou ao Mercado São Sebastião e percorro seu entorno fazendo compra de insumos para a cozinha do meu comércio, a Embaixada da Cachaça, rotina repetida religiosamente nos últimos dois anos e meio. A pressa é grande, a lista de tarefas, enorme, e a cabeça totalmente ocupada com projetos e pensamentos que vão até o ano de 2035. Nunca dá tempo para ver além do olhar.

Terça última, no entanto, foi diferente. Amanheci a segunda com o propósito de entrar num ritmo mais lento, dando mais atenção a pequenas coisas do dia a dia, e deixando que as grandes questões percorram seu curso mais naturalmente. O universo parecia em sintonia comigo, porque naquele dia tudo estava, também, mais calmo: pessoas, trânsito, e o movimento habitualmente frenético do mercado e lojas, uma tranquilidade só.

Foi dentro desse panorama que, ao sair pela lateral do Mercado, consegui ver uma bela e antiga construção camuflada atrás da testada comercial de uma loja de ferragens. Parecia até que eu nunca estivera ali, que nunca saíra por aquela mesma porta lateral. Ah, como é boa a sensação de olhar e conseguir ver além dos olhos!
          

           
Não resisti e atravessei a rua. Fiquei por ali, olhando as ferragens expostas à venda, mas, na verdade, estava sondando o ambiente. A fachada da casa estava perfeitamente visível (para quem estivesse disposto a vê-la). De longe podemos ver detalhes em alto relevo e a inscrição “Laboratório”. Conta com recuo frontal, pequena área de acesso à porta principal e três janelas altas com vitrais. Pedi licença a um funcionário e fui entrando.

                     

                     

                     

Embora utilizada com depósito de ferragens e materiais pesados, o imóvel se encontra em estado de preservação bastante razoável. Piso mosaico na entrada e madeira corrida na parte interna, portas, bandeirolas trabalhadas, forro em lambri num pé direito alto, vitrais. Estão todos lá. Ainda. Fiz uma viagem no tempo voltando aos anos 40, talvez. Imaginei que funcionou como um laboratório de análises clínicas, com balcão de atendimento, sala de espera, salas da coleta de material e a parte laboratorial em si. É possível que tenha sido ocupado originalmente como residência. Uma bela residência, com todas as nuances de uma família completa: idosos, adultos, jovens, parentes, criados. No quintal, animais e fruteiras. Portas e janelas sempre abertas durante o dia.

Minha incursão foi limitada pelo pouco tempo que dispunha e pela falta de autorização oficial para ir mais adentro. Volto outro dia, quando os astros se alinharem novamente, para fazer o serviço completo. Espero que em breve... E que ela ainda esteja lá.



Altino Farias, em 11/09/2019